As pranchas fisionômicas e seus modelos
Heitor de Assis Junior, Unicamp

A Flora brasiliensis apresenta no primeiro volume, as Tabulae Phisiognomicae Brasiliae, compostas por pranchas litografadas das regiões fitogeográficas brasileiras. Os originais dessas pranchas foram executados por diversos artistas como Thomas Ender, Benjamin Mary e Johan Jacob Steinmann e pelo fotógrafo George Leuzinger. A presença dos artistas era importante num período em que os aparelhos de captação de imagens ainda não estavam desenvolvidos.

Parte dos desenhos e pinturas utilizados por Martius como originais para suas litografias foi proveniente de álbuns de viagens que visavam o público europeu, muito interessado em locais exóticos, repletos de singularidades naturais, sociais, étnicas e políticas, entre eles, o Brasil. Através da pintura, a beleza do local era desvendada, e o cientista naturalista revelava as particularidades de um "novo mundo" possuidor de um verdadeiro tesouro botânico e zoológico.

Além disso, a vegetação grandiosa representada pelas árvores tropicais repletas de parasitas e epífitas dá um aspecto dramático à representação. A floresta além de majestosa se apresenta assustadora. No século XIX, a exuberância da natureza tropical aparece na literatura e na arte com seus tons ocres, verdes e dourados, resultando numa visão quase sobrenatural e mística da floresta que representa a verdadeira nação dos trópicos. Nessa representação, a grandiosidade da natureza aparece substituindo as monumentais estruturas arquitetônicas e esculturas tão presentes na representação européia.

A paisagem nacional a partir de modelos produzidos por um viajante estrangeiro como Martius, mostra, muitas vezes, a floresta como cenário para grupos de homens civilizados em ambiente exótico e tipicamente nacional brasileiro.

Essa nova situação estabelecida no Brasil Império vem substituir a economia predatória preconizada pelos colonizadores portugueses que viam a natureza como obstáculo para o cultivo e, portanto, como impedimento para a fonte de sustento da metrópole. No Império, a natureza passa a ser difundida pelos artistas e escritores através de seu valor estético e espiritual, no mais próprio estilo da tradição romântica, substituindo o valor político e econômico no qual representava uma fonte considerada inesgotável de recursos naturais.

A comparação com o ambiente europeu é realizada por Martius, tanto em sua obra Viagem pelo Brasil, como nas descrições das pranchas fisionômicas, ora em estudo. Durante suas comparações geológicas, estabelece muitas relações de semelhança com o "Velho Mundo"; os animais e plantas são descritos com muito entusiasmo e admiração em sua diversidade. Além disso, a presença da corte imperial no Brasil e a abertura dos portos incentivou a promoção do Brasil no exterior, a presença dos viajantes, e até mesmo o patrocínio de muitos deles, inclusive no tocante à publicação de suas obras, sejam álbuns de viagens ou científicas. Mais tarde, D. Pedro II seria um dos financiadores da Flora brasiliensis.

A presença da corte portuguesa no Brasil permitiu o aparecimento dos primeiros ateliês xilográficos, seguidos dos litográficos1. A imprensa, inicialmente divulgadora de fatos sociais, acaba se constituindo num veículo de divulgação do Brasil e em um embrião do seu processo de construção histórica. Entre os ateliês litográficos, o primeiro foi montado pelo litógrafo Johann Jacob Steinmann, que publicou em 1836 seu Souvenirs do Rio de Janeiro. Martius deve ter entrado em contato com esta publicação e utilizou-se da imagem como modelo para a prancha XLIV.

Muitas das plantas presentes nas pranchas fisionômicas do primeiro volume foram, posteriormente, redesenhadas por especialistas que conviveram e/ou trabalharam com Martius nos demais volumes da Flora brasiliensis, os quais tratam especificamente dos grupos vegetais. Os desenhos a partir dos originais tinham que ser adaptados a fim de permitirem uma boa qualidade da cópia litográfica.

Algumas das pranchas depois de litografadas foram sutilmente pintadas uma a uma, fato constatável através de diferenças existentes entre os primeiros volumes examinados nas diferentes bibliotecas: José Mindlin, em São Paulo, do Instituto Agronômico de Campinas e da Escola Superior de Agricultura da USP, em Piracicaba.

Na base da maior parte das pranchas litografadas encontram-se nomes dos autores dos originais e dos litógrafos.

A técnica da litografia permitia ao editor acrescentar detalhes à obra de arte, detalhes anatômicos e estruturais importantes na identificação botânica. Nas pranchas do primeiro volume da Flora brasiliensis, exemplares ou espécies de interesse foram acrescentadas na paisagem de acordo com anotações colhidas durante a viagem pelo Brasil de 1817 a 1820.

Nas pinturas e desenhos de Thomas Ender, por exemplo, há um panorama geral do local e/ou do vegetal; na prancha correspondente, o cientista, a partir de suas anotações de viagem, incluiu espécies vegetais mais adequadas àquele ambiente, entre elas, diversas espécies de palmeiras que eram bastante caras a Martius que, inclusive, dedicou-lhes toda uma obra, a Genera et species palmarum2.

Na base da prancha LIX, a última das fisionômicas, encontra-se o nome do fotógrafo George Leuzinger, cujo original é de apenas um ano antes da morte de Martius, o que demonstra que o autor, até o final da sua vida, persistiu na edição da Flora e chegou a utilizar fotografias, meio de captação de imagens bastante recente à época.

  • Prancha VIII - A floresta primitiva que sombreia a estrada entre Jacareí e a aldeia da Escada na província de São Paulo.

  • Prancha XXXI - Artocarpus integrifolia (jaqueira), de cuja sombra vês a baía e a cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro.

  • Prancha XLIV - Cultivo do café em uma propriedade entre a cidade de Magé e as montanhas da Serra dos Órgãos.

1 A litografia é uma técnica de impressão que utiliza como base a pedra; no caso da xilogafia é a madeira.
2 MARTIUS, 1817-1820. Genera et species palmarum.